Lendo

terça-feira, 30 de julho de 2013

A vergonha. A vergonha - dirá depois - é uma das mais poderosas máquinas de enquadramento social que existem. O faro para conhecer a medida da normalidade, em cada gesto cotidiano. Não saia da linha. Não enlouqueça. E, principalmente, não passe ridículo. Ele pensava sinceramente que já havia transposto esse Rubicão de uma vez por todas - o teatro de rua que participara anos atrás, na comunidade, com grandiloquência pretensiosa fantasiando-se de teatro popular já lhe dera micos suficientes para um doutorado em cara de pau. Mas havia proteção de grupo e invólucro de inconsequência - ele ainda podia ser qualquer coisas a qualquer momento; ele ainda podia mudar de rumo; ele tinha um destino algum. Tinha só a arrogância da liberdade. Fodam-se.

A família do velho Kennedy escondeu do mundo, a vida inteira, um filho retardado. Havia muita coisa em jogo, é verdade - mas o grande motor era a vergonha. A vergonha regula do catador de lixo ao presidente da República. É uma chave poderosa da vida cotidiana: esses políticos deviam é ter vergonha na cara!, nós dizemos todos os dias, o que é um mantra que nos redime e nos tranquiliza. Como se fosse a mesma coisa, agora ele sentia vergonha, embora a palavra, por algum mistério, não lhe aflorasse, o som da palavra em sua simplicidade, como alguma coisa tão absurdamente simples, vergonha, não pudesse fazer parte da sua vida (só os medíocres sentem vergonha, ele recitava) - o que chegava à pele, o que queimava, era o sentimento insuportável de alguma coisa errada. E alguma coisa errada não com o filho, mas com ele mesmo.

A criança dorme, a mão agora também dorme, e ele acende outro cigarro, no escuro. A mulher tem razão: ela acabou com a vida dele, ele suspira, concordando, e sente-se misteriosamente mais tranquilo.

O filho eterno - Cristovão Tezza (p.44-5)